lundi 11 juillet 2011

314éme: L´Anatomie de la sensation. Uma tradução de movimentos em carne, osso e cores.

O pintor irlandês Francis Bacon (1909-1992) tinha o curioso hábito de usar o “lado ruim” das telas em suas obras, costume que ele diz ter adquirido após uma crise financeira. Entretanto, a atração de Bacon não se dirigia apenas pelo avesso das telas, ele parecia fascinado pelo inverso dos corpos, como se buscasse encontrar ali uma nascente de sensações. Suas concentradas e abstratas pinceladas promoviam a desconstruções da carne para a liberação da figura. Libertar a figura é fugir da representação para se concentrar e alcançar o fato, um exercício de desfazer imagens a fim de dar forma às percepções. O estudo dos movimentos humanos ou de animais, decompostos pela fotografia, era uma das maneiras pelas quais Bacon tentava enxergar o que desejava que fosse visto. Do extravasamento de disformidades e cores surgiram muitos dos agitados vultos que compõem o trabalho do pintor. 


 
Os corpos abstratos de tais telas habitam por hora os corpos dos bailarinos da L´Opéra Bastille de Paris, traçados pelo jovem Wayne McGregor, considerado como o atual prodígio da dança britânica. Em L´Anatomie de la sensation, que estreou em 29 de junho, o coreógrafo revira o universo do pintor em uma tradução daqueles movimentos que surgiram de uma decomposição e agora são recompostos em outra linguagem, mas com semelhantes questões a se propor: De onde vêem as sensações? Como fazê-las surgir em materialidade? Como extraí-las e vê-las? Se Bacon assola a carne para fazer livrar as sensações, entende-se que no corpo elas estão aprisionadas, ao menos nesta perspectiva artística. Destruir corpos, como nas carnificinas adoradas pelo pintor, evidentemente, é impensável para um coreógrafo, o que faz do corpo, contraditoriamente, o objeto a partir do qual se cria e ao mesmo tempo a matéria da qual é preciso se livrar. Livrar-se da carnalidade para libertar sensações, eis o desafio da dança de McGregor.


Nesta provocação de não se ser corpo incluem-se outras corporalidades. Embora uma real ilustração da obra de Bacon esteja fora dos propósitos coreográficos, muitas das inspirações da equipe artística se evidenciam, facilmente, no palco. A maior delas está na construção do espaço cênico assinada pelo arquiteto John Pawson e que foi baseada no formato tríptico, constantemente utilizado pelo pintor. Duas imponentes “paredes móveis” foram erguidas no palco fazendo coexistir uma série de territórios isolados e simultâneos pelos quais a dança passava, por vezes em desejada desordem, dando ao espectador o gosto de organizar a cena segundo sua fruição. Em seus deslocamentos, as estruturas promoviam espacialidades dinâmicas que atreladas a um jogo de luzes e sombras, davam diferentes direções e níveis de profundidade à cena e promoviam uma espécie de confronto entre frente e verso. O desenho da luz relacionava-se harmonicamente com o movimento do cenário e, com isso, dirigia os olhares e compunha verdadeiras telas em cena. Era tamanha a densidade dos tons que pareciam palpáveis.  

   
O berro das cores em Bacon foi ouvido e pode ser visto não só na iluminação e figurino, mas na propriedade de dar ritmo a apresentação das sequências.  Na última delas, uma textura negra parecia absorver a cena, em distintas nuances, do fundo do palco até a boca de cena, onde um bailarino, cruamente iluminado, luta para não ter a carne devorada pela escuridão que irá encerrar o espetáculo. Lembremo-nos que na série de bocas presentes na obra do pintor quase todas são escuras, talvez porque o estímulo tenha vindo das figuras de um livro sobre doenças bucais, mas segundo o crítico e debochado Bacon, foi mesmo por sua incapacidade de alcançar o que mais lhe atraía entre línguas e dentes, a vibração das cores.

 Já o movimento sonoro dessas bocas gritou aos ouvidos do compositor Mark Anthony Turnage, que se diz especialmente influenciado pelos retratos do Papa Inocêncio X - estudos nos quais Bacon reinterpreta a famosa tela de Velasquez (Pope Innocent X, 1650) -, e por Blood on the Floor, imagem que deu nome a trilha do espetáculo. Executada pelo Ensemble Intercontemporain e mais cinco jazzmen, a música também procura algumas quebras; ao abrir espaços para improvisos, e deformidades; pelos escapes atonais presentes nas sequências melódicas. Mas, talvez seja outro o pensamento do autor que mais se sobressaia aos ouvidos de quem desconhece a técnica musical: o visceral. Os corpos parecem impulsionados e conduzidos por uma intensidade sonora que, por vezes, margeia a violência, que tensiona o movimento até o ponto de deslocá-lo, de retirá-lo da profundeza das vísceras e prolongá-lo ao espaço ocupado. Em L´Anatomie de la sensation a música é pontecializadora e, principalmente, condutora da indiscernibilidade homem-animal, como se cumprisse a função de revelar o remarcável devir animal que o filósofo Gilles Deleuze sugere aos corpos Baconianos em "Lógica da Sensação" (1981), livro também dedicado a obra do pintor. 


Diante de todos os elementos citados foi armado o grande palco. Nele as figuras corporais, assim como nas telas, são espacialmente isoladas por círculos, linhas, dimensões, enfim, há uma bem cuidada geometria que marca o lugar da dança. O espaço se organiza para que o corpo seja o centro da desconstrução, para que caiba ao movimento tensionar o limites das sensações. Bailarinos de virtuosidade extrema impelem, pela constituição e velocidade dos movimentos, a “batalha da vianda”, que como quer Deleuze é um estado do corpo no qual carne e osso se confrontam ao invés de se estruturarem. É dessa ordem a qualidade do movimento que ocupou a cena e que alcançou o corpo-bicho. Em busca da abstração e com a intenção de gerar imagens de sensações corpos exímios coagiram, contorceram-se, “gritaram” e fraturaram-se em gestos. Se há algo na obra de Wayner McGregor que poderia não agradar a Francis Bacon imagino que seja o fato de poder ser facilmente apreciada, tamanha a beleza de toda sua composição. O pintor preferia não agradar tanto.




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